Márcia, a borboleta que há-de vir

O palco estava organizado em meia-luz. Era um bom prenúncio: a noite seria francamente de embalar. Depois de sala composta, aquela mesma meia-luz começava a descobrir-se com a entrada de dez músicos no palanque de madeira, que ordeiramente foram pegando nos intrumentos que lhes competia.

Saiu um "muito boa noite" do microfone. O som, difuso e sem se perceber muito bem de onde vinha iria justificar mais tarde a posição de Márcia: num lugar pouco central, rodeada pelos músicos e sem qualquer pretensão de a mudar. «Decanto» abriu o concerto no Cinema S. Jorge e foi também de um canto que Márcia começou a mostrar-se. A sonoridade abafada semelhante aos britânicos Daughter combinava com uma líder de palco que não o queria ser. Todos estavam vestidos de preto, transpunham uma seriedade livre que viria a engrossar em crescendo o cenário folk.

Entretanto Serginho ou o Sérgio Nascimento, que Márcia viria a apelidar mais tarde de "um dos amigos que dá cor às bandas da actualidade" assumia os tambores em palco enquanto os três homens de sopro se resguardaram no lado esquerdo da sala. Nisto «Sussurro» foi tocado assim mesmo: quase todo ele como se fosse um segredo (um volume baixo que imperou em quase todo o alinhamento) e com Márcia a parecer uma Joan as Policewoman, mas com menos dramas.

De estilo revisteiro, dona de si e do pedaço, Márcia colocou as mãos nas ancas. Sem coro e quase sem intrumentos, versou «Delicado» com uma voz embargada mas também acriançada, a fazer lembrar a jazzística Luísa Sobral, a amiga que estava também na plateia naquela noite de 14 de Maio.

Seguiu-se  a concertina de Celina da Piedade que trouxe cor à cena monocromática (mais por causa do vestido volumoso e colorido que envergava do que propriamente pela presença); Márcia designou-a como "uma das estrelas da noite" e «Misturas» ouviu-se em dueto. Foi uma música yo-yo, de altos e baixos, de um tradicionalismo algo forçado, utilizado (talvez) para disfarçar uma timidez natural de Márcia, que continuou em «Deixa-me Ir».

"Espero que estejam a gostar porque isto está quase no fim", mentiu à plateia. Preparava-se para «Camadas»; colocava depois  um pequeno gancho no cabelo, que dizia ter sido pensado propositadamente para aquele momento. No meio de uma sonoridade de old west e de uma fotocópia de Margarida Pinto (Coldfinger) ou de Nerina Pallot, Márcia chamava ao palco o gigante (em todos os sentidos) Samuel Úria. Juntos recriam «Menina» e «Mais Humano Sentimento São», com Úria a dançar desengonçado, como se fosse um fantoche com vontade própria. Iluminou a sobriedade de Márcia e acordou a plateia.

E isto foi o mote para Márcia conversar mais com quem estava a vê-la naquela noite, a partir das cadeiras da frente. «Pra Quem Quer», do primeiro trabalho discográfico , foi o bastante para pôr o público a fazer de coro, com João Correia (o baterista) como maestro improvisado. Mais inquieta ou mais efusiva, Márcia percebeu que os seus ouvintes estavam agora mais conectados. «Pudera Eu» trouxe-a mais para a frente do palco e a «Hora Incerta» instaurou a desorganização. Márcia confessou que aquela música era uma espécie de desabafo, "um bocado nocturna". A cacofonia confusa, o sentido menos conciliador de um rock, aliados ao sopro de saxofone viriam, no entanto, a ser sol de pouca dura. «Brilha» remeteu tudo de volta para a doçura e para uma acústica que é, sem margem de erro, o melhor conforto de Márcia.

Começavam as despedidas com «Paz da Noite» e com «Desmazelo» (com Celina da Piedade de novo no palco), altura em que Márcia aproveitou para os agradecimentos da noite: entre editora, compositores, colegas de profissão, a artista orquestrou ainda um obrigada especial ao marido, Filipe Cunha Monteiro, produtor do disco e também dono das teclas em palco. Sairam todos do palco com o público, em frente, de pé.

O encore começou quando Márcia foi avistada ao canto da sala de braços abertos, pronta para subir de novo os pequenos degraus que permitiu que regressasse aos holofotes. «A Pele Que Há em Mim» - música viral no Youtube cantada em parceria com JP Simões - foi ali cantada apenas por ela. O resultado foi um quase acapella que "eufemismou" a voz limpa de Márcia, com em «Vem» a mostrar que também sabe e gosta de vaguear em palco. Com todos ali, ela avisou: "Vamos cantar uma música para despertar, podem cantar o que quiserem; é para a desgraça". De repetente, estavam todos (o público também) a entoar "eu não volto a jogar à cabra cega", enquanto estalavam os dedos. E isto é como quem diz que "o melhor fica sempre para o fim". 

Casulo, o segundo disco de originais da artista portuguesa foi o motivo desta noite. E talvez o mesmo título possa ser dado ao lugar onde Márcia se sente melhor. Ainda está para vir uma Márcia transformada em borboleta: mais livre, mais inteira.


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