Márcia ao vivo no Cinema S.Jorge

O elevado sentimento de partilha continua a ser uma das mais valias da música feita em terras lusas. Tal faculdade, que andou omissa durante as décadas dos «entas», continua a crescer de ano para ano e abrange todos os patamares musicais que vão desde o mainstream de David Fonseca e Luisa Sobral, até aos confins do subsolo dos artistas da FlorCaveira e restantes companheiras da cena independente. Esta aura saudável que paira no cenário atual da música portuguesa acompanhou Márcia no concerto do passado dia 14 de maio no Cinema S. Jorge, onde a artista apresentou o seu novo álbum de originais, Casulo.

Márcia fez-se acompanhar por cerca de uma dezena de músicos em palco. Entre os instrumentos presentes pudemos encontrar a guitarra Manuel Dordio (Minta & The Brook Trout), a bateria de João Correia (Julie & The Carjackers), a guitarra pedal Steel de Filipe Cunha Monteiro (marido da artista), percussão, coros e um naipe de metais. O alinhamento abriu com «Decanto», o primeiro tema de Casulo, ao qual se seguiriam «Sussurro» e «Delicado». Apesar de Márcia ter evidenciado alguma timidez nos primeiros instantes do concerto, a barreira entre a artista e o público desmoronou-se com a entrada desenfreada e a participação totalmente desinibida de Samuel Úria, um dos convidados da noite que acrescentou voz e guitarra aos temas «Menina» e «Mais Humano Sentimento São». Já antes, Celina da Piedade tinha subido ao palco – vestida a preceito e com um calçado que em muito se assemelhava a Dorothy Gale do livros do feiticeiro de OZ – para emprestar o seu talento e o som do seu acordeão a «Misturas» e «Deixa-me Ir» (mais tarde a parceria viria a repetir-se em «Paz Da Noite»).

Foi com um notável desembaraço que o concerto prosseguiu, com a artista a interpretar canções do seu recentemente estreado Casulo, a par de outras do álbum anterior, e a mostrar-se muito mais comunicativa com o quase esgotado Cinema S. Jorge. É notável sentir, nos intervalos da voz doce e amena que dá expressão às letras – à primeira vista inocentes – de Márcia, uma urgência e uma vontade vulcânica de transmitir uma intenção e uma mensagem, como é perceptível em «Deixa-me Ir» e «Hora Incerta». Esta última, que Márcia assumiu ser a música mais escura e profunda que alguma vez escreveu, veio acompanhada, no concerto em questão, dum excelente apontamento psicadélico que casou na perfeição com a iluminação envolvente e a névoa ténue criada em palco.

Chegado o final do concerto, e depois de uma despedida muito aplaudida à artista e aos seus companheiros, o regresso ao palco ficou pautado pela aprazível «A Pele Que Há Em Mim», canção que Márcia fez questão de interpretar sozinha em cena e que perdeu, como já seria de esperar, algum do brilho e magia com a ausência da voz de J.P. Simões. De seguida, «Vem» proporcionou-nos um dos momentos mais ricos em termos de musicalidade com um exímio e irrepreensível solo de trompete que a própria artista fez questão de salientar no final do tema. «Cabra Cega» encerrou o encore e contou com o regresso de Samuel Úria e Celina Da Piedade ao palco, mas desta vez sem nenhum papel específico a desempenhar, apenas com a finalidade de estarem presentes no momento lúdico que colocou músicos e audiência a relembrar tempos de infância.

Foi em celebração que a apresentação de Casulo chegou ao fim, com o público a agradecer por mais uma excelente performance musical e com a música portuguesa a homenagear-se a si própria com tais momentos intensos de partilha e camaradagem.

Sem comentários:

Enviar um comentário